Projeto usa o graffiti como meio de ressocialização de ex-detentos

Um indígena azul estampado em muros de grandes metrópoles brasileiras já se tornou um símbolo nacional. Ilustrado em diversas vestimentas e presente em uma variedade de cenários, o personagem, tão familiar à primeira vista, é criação do artista visual Fabio de Oliveira Parnaiba, mais conhecido por sua assinatura Cranio.

Seu trabalho imerge em fontes que passam pelo Surrealismo de Salvador Dalí, por referências pop, cartoons e animações. Elementos que ajudam a construir narrativas que mesclam sentimentos e reações dos espectadores.

Reconhecido internacionalmente, Cranio tem trabalhos em diversas partes do mundo. Seu nome e de outros artistas são inspiração para quem vislumbra colocar uma forma de expressão urbana em prática. Com uma lata de tinta spray nas mãos, muitos jovens sonham com uma arte no qual se reconheçam.

Ao longo do segundo semestre de 2022, um grupo de pessoas em privação de liberdade no Centro de Progressão Penitenciária de Hortolândia, no interior paulista, começou a materializar esse desejo. Com um projeto de graffiti, 26 reeducandos tiveram aulas sobre o tema e montaram os próprios murais dentro da unidade prisional.

Divididos em duas turmas, os beneficiários participaram da teoria e esboço à finalização dos desenhos, gravados em salas escolares do CPP. Para fazer sentido ao processo, os retratados precisavam carregar simbologia e representatividade ao ambiente. Os educadores Paulo Freire e Milton Santos foram os escolhidos, traduzindo a importância do conhecimento para todos os públicos.

Com o objetivo de promover o desenvolvimento psicossocial e a ressignificação da identidade dos internos, a iniciativa foi apoiada pelo Instituto Ação Pela Paz (organização assistida pela CNseg), que, por meio do SEMEAR*, contribuiu com o desenvolvimento da metodologia e monitoramento do programa, além do custeio dos materiais.

A intensão era possibilitar a reintegração social de forma mais saudável por meio de uma atividade até pouco tempo tida como de menor valor cultural, utilizando-a como instrumento da psicologia social. Esse caminho tem mostrado sinais de assertividade. Os participantes reconheceram a melhora na sensação de pertencimento. Convívio, consciência das emoções e como expressá-las, incluindo também a autoestima, também tiveram evolução positiva expressadas pelos próprios alunos.

Os psicólogos, grafiteiros e arte educadores Pedro Oliveira e Paula Montenegro idealizaram o projeto batizado de CACTO (Cultura e Arte Como Transformadores Objetivos). A ideia, calcada no entendimento que o ser humano se desenvolve a partir dos livros que lê, do alimento que ingere, das músicas que escuta e da arte que consome, gera frutos fáceis de serem notados pela dupla e por quem cuida da gestão do CPP.

“Observamos que as relações grupais proporcionaram um avanço nos projetos de vida de cada sujeito ali presente, visto que através da arte emergiram reflexões e debates acerca de temas como trabalho, educação, relações familiares, entre outros”, comenta Pedro.

A liberdade ganha amplitude e retornar ao crime se torna uma alternativa descartada. O psicólogo lembra que “foi recorrente, no processo grupal, relatos como ‘quando eu sair daqui quero começar a trabalhar com pintura e tatuagem’, ‘quando estamos aqui nem parece que estamos presos, conversamos sobre coisas que nos motivam e nos conhecemos melhor’”.

Marta Moreira Meira, Diretora Técnica de Saúde, responsável pela iniciativa na unidade, conta que o impacto é notável no dia a dia. “Percebe-se que os reeducandos que fazem parte do projeto se sentem valorizados, pois além da oportunidade de expor sua arte, os mesmos têm a chance de obter conhecimento sobre o processo de construção que a envolve”, explica.

“O projeto idealizado pelo Pedro e a Paula é inovador, tanto pela maneira como trouxeram reflexões relevantes aos reeducandos, quanto pela sua execução ser em forma de grafitti, expressão artística constantemente atacada e marginalizada”, comenta Rochelly Tatsuno, analista responsável pelo acompanhamento do projeto no Ação Pela Paz.

Paula Montenegro mergulhou no propósito de gerar pensamento crítico como sentido da ação. “O trabalho foi desenvolvido para colocar o desenho do mural como síntese, e não como único objetivo dos encontros. Para isso, levantamos a questão: por que fazer um mural na ala da escola? A partir dessa pergunta, pudemos compreender um pouco mais sobre o papel da educação na vida de cada um deles em cárcere e em liberdade”, conta.

“Dar início a esse projeto foi ver acontecer um sonho que eu e o Pedro estamos pensando juntos desde 2019 (o andamento foi interrompido em 2020 por conta das restrições em decorrência da pandemia). De lá para cá pudemos aperfeiçoar muito da ideia inicial e fortalecer ainda mais a nossa certeza na potência da união entre arte e psicologia”, completa Paula.

Não à toa, 100% dos que integraram o CACTO acreditam que ele irá colaborar com a sua recuperação. Eles também relatam que o processo os ajudou a ampliar suas visões sobre a vida. Dados importantes para um retorno positivo à sociedade, tendo como derivação a diminuição da reincidência criminal, principal pretensão de todos os envolvidos.

E como boas coisas não se restringem a um único momento, 82% dos participantes demonstraram interesse em se tornar um multiplicador do aprendizado e todos os 26 disseram que indicam as atividades aos colegas em detenção.

Rochelly destaca que “acompanhar as atividades e os relatos trazidos por eles durante os monitoramentos foram uma tomada de fôlego”. “Saber que, apesar de todas as problemáticas enfrentadas dentro do sistema prisional, ainda temos pessoas mobilizadas para mudar essa realidade por meio da arte e educação como agentes de transformação”, diz a analista.

“Acreditamos nesse projeto como um piloto que pode ser modelo para uma futura política pública que considere a importância da arte e da cultura para o desenvolvimento do sujeito e se aproxime do paradigma da justiça restaurativa”, conclui Pedro, esperançoso e ciente da força do que foi produzido.

Sobre o SEMEAR

O Semear (Sistema Estadual de Métodos para Execução Penal e Adaptação do Recuperando) foi criado em 2014 por meio do provimento da Corregedoria Geral da Justiça do Tribunal de Justiça de São Paulo e tem como parceiros a Secretaria Estadual de Administração Penitenciária e o Instituto Ação pela Paz. O programa busca maior efetividade na recuperação dos presos e suas famílias.

Fonte: CNseg