Os contratos de seguros e os direitos dos consumidores
Ninguém compra seguro por prazer, entusiasmo ou alegria, mas sim porque, desde que o mundo é mundo, o ser humano descobriu que a vida tem riscos. “Um dia, o primeiro homem que chegou à porta da caverna, já deu de cara com um tiranossauro rex e pensou duas coisas: esse bicho é maior que eu e me mete medo; e a segunda: sozinho não dá pra encarar essa fera e preciso chamar o resto da turma que está dentro da caverna”. E é isso que, desde então, os seres humanos fazem. Atuam juntos para se prevenirem dos riscos que se materializam.
Dessa forma bem-humorada, começou a apresentação da advogada Angélica Carlini, doutora em Direito Político e Econômico e diretora do Brasilcon, durante o painel “Os contratos de Seguro e Previdência e os direitos dos consumidores”, realizado no segundo dia do XII Congresso Brasileiro do Consumidor do Brasilcon, em Foz do Iguaçu, dia 3.
O contrato de seguro, como lembrou a professora, é baseado na Lei dos Grandes Números. Segundo ela, “dada uma amostra de observações independentes e identicamente distribuídas de uma variável aleatória, a média da amostra tende a se igualar à média da população, na medida em que o número de observações aumenta”. Apesar de o texto da lei não ser de compreensão imediata, sua lógica é fácil de intuição no exemplo que apresentou: “Se um segurador aponta para um prédio e diz que todos os seus clientes de seguro de incêndio residem ali, você vai pensar que o indivíduo não entende nada de seguro”. Para que a lei funcione, disse ela, os riscos precisam ser independentes e estar espalhados, evitando, assim, que todos os sinistros venham a ocorrer simultaneamente.
O seguro é um contrato baseado no mutualismo, onde todos do grupo contribuem com uma parte para um fundo que ressarcirá o integrante do grupo que vier a sofrer com o evento objeto do contrato. Há, ainda, como explicou Carlini, outras variáveis para que um risco possa ser segurado: é necessário um conhecimento técnico sobre suas consequências e este risco não pode possuir uma alta hipótese de incidência.
O conhecimento técnico e o cálculo sobre a possibilidade de ocorrência são de responsabilidade do profissional mais importante dentro da seguradora: o atuário.
Contudo, para que o atuário possa calcular todas as variáveis do risco, ele precisa de informações, que também precisam ser passadas pelo segurado. Se, por exemplo, um carro passa a noite na rua, há mais risco de ser roubado do que um que fique na garagem. Assim, a compra de seguro é também a assinatura de um contrato de boa-fé. Boa-fé no fornecimento de informações, mas também na expectativa de que o segurado não vá agravar, intencionalmente, a probabilidade de risco. Como exemplo, ela cita o caso de um segurado que deixava o carro estacionado com a chave na ignição. Dependendo do propósito, ou seja, se há ou não intenção de dolo, pode ser classificado como um caso de fraude.
Excluindo-se a hipótese de dolo, que é simplesmente caso de polícia, para um bom funcionamento de todo o processo, o segurado precisa ter um bom conhecimento sobre as coberturas contratadas e sobre os valores dos capitais segurados, além de reconhecer-se como parte de uma mutualidade. Então, se ele muda de residência, por exemplo, de um local com garagem para outro sem, deve informar à seguradora, pois o risco aumenta e precisa ser precificado.
Seguro Popular
Sucedendo Angélica Carlini, o promotor de Justiça do Ministério Público do Rio de Janeiro, José Augusto Peres, vice-presidente do Brasilcon, deu detalhes das regras do novo Seguro de Automóvel Popular, previstas pela Resolução CNSP 336. Tal resolução foi publicada após a promulgação da Lei Federal 12.977/2014, que define as regras de funcionamento das oficinas de desmontagem de veículos.
O seguro popular torna a apólice de auto mais barata, porque prevê a utilização de peças usadas nos reparos. Mas está proibida a utilização de peças de itens de segurança, como sistemas de freios e de suspensão, entre outras. As peças passíveis de comercialização precisam ainda ser devidamente marcadas e registradas em um banco de dados nacional, para que possam ser rastreadas, facilitando, assim, a fiscalização. As empresas responsáveis pelo desmonte podem efetuar reparos nas peças comercializadas, como no caso de uma porta amassada, que pode ser reparada e repintada antes da venda. O que essa oficina não pode é dedicar-se, além dessa atividade, a qualquer outra não prevista na norma. Dever de informação.
A última apresentação do painel foi realizada pelo professor de Direito e diretor do Brasilcon Paulo Roque Khouri, que abordou o tema do dever de informação x dever de esclarecimento, utilizando como referência a legislação de Portugal, onde a compreensão dessa diferença está mais avançada, com o novo Regime Geral dos Contratos de Seguro.
Basicamente, o que o professor defende é que as seguradoras precisam ir além de simplesmente passar as informações necessárias aos segurados, mas devem se certificar se estas foram devidamente compreendidas. Atualmente, até mesmo por imposição da Susep, que obriga a reprodução em contrato de certos textos de forma específica, o consumidor pode ler o conteúdo, mas não compreender. Cabe então à seguradora, até mesmo para garantir que não será eventualmente responsabilizada, certificar-se que houve o entendimento.
Como exemplo, Paulo Roque citou o caso de uma decisão da Justiça portuguesa, em que o problema não era a clareza da cláusula em si, mas o fato de a seguradora não ter provado que advertiu o consumidor da limitação da cobertura contratada. Na sentença, a juíza afirmou que a seguradora não cumpriu o dever de informação, ao não ter demonstrado que chamou atenção de forma especial para cláusula prejudicial ao interesse do segurado.
Ele, referindo-se ao direito de informação previsto no Código de Defesa do Consumidor brasileiro, que ajuda a instrumentalizar a liberdade de escolha, também vê falha, devido a questões embutidas na natureza humana. Quantas pessoas leem integralmente todos os contratos que firmam? Como exemplo, citou o caso de uma empresa de venda pela internet que colocou, como teste, uma cláusula dizendo que daria mil dólares para quem a contatasse de determinada forma e demorou quatro meses para isso acontecer.
Finalizando, para exemplificar a dificuldade de compreensão das pessoas, contou uma piada baseada na passagem bíblica em que Jesus dizia para atirar a primeira pedra na pecadora aquele que nunca errou. Um homem adiantou-se, pegou uma pedra e acertou a cabeça da mulher. Surpreso, Jesus perguntou: - Você nunca errou? – e o homem respondeu: - Dessa distância, nunca!
Fonte: CNseg