Vai aumentar o trabalho dos juízes
Uma das consequências das crises econômicas é o aumento natural dos conflitos. Na medida em que o dinheiro fica curto e que cada um tem de fechar seu mês, invariavelmente com menos do que seria desejável, a busca por alternativas se impõe como questão de sobrevivência. E é uma via de duas mãos porque, da mesma forma que as cobranças indevidas começam a pipocar, a inadimplência, com ou sem razão, também cresce, impulsionada pela falta de caixa e pela certeza da longa demora de qualquer trâmite judicial, incluídos os processos nos Juizados Especiais, os antigos Juizados de Pequenas Causas.
Ainda que a ideia seja apenas ganhar tempo para reforçar o caixa por meio de um escalonamento de quem deve ser pago na frente e quem pode ser deixado para depois, o caminho mais fácil é criar o desencontro das posições, para, por meio dele, forçar o fracasso da negociação, levando à competente ação de cobrança, desde o início condenada a demorar, na melhor das hipóteses, considerando o interesse por acordo rápido, pelo menos vários meses.
No campo dos seguros a situação é ainda mais complexa. Seguro existe para garantir patrimônio. Em época de crise, de dinheiro curto, as empresas e as pessoas ficam com menos disponibilidade para honrar seus compromissos no dia do vencimento. O resultado é criarem uma tabela de pagamentos levando em conta seus interesses mais diretos e, aí, evidentemente, na medida que Deus é brasileiro e sinistro só acontece no vizinho, o pagamento dos prêmios de seguros acaba ficando para o fim.
O problema é quando o sinistro acontece na casa ou na empresa do segurado com o prêmio atrasado ou não pago. De acordo com o Código Civil, que é a lei que regulamenta o contrato de seguro, a ordem do negócio é o segurado primeiro pagar o prêmio e, depois, em caso de sinistro, a seguradora pagar a indenização. E a razão para isso é simples: a operação de seguro se baseia num conceito chamado mutualismo, pelo qual os segurados participam de um fundo comum, destinado a fazer frente aos sinistros que os atingem, com uma contribuição proporcional ao seu risco.
Quando um segurado deixa de pagar o prêmio, caso ele seja mantido no mútuo, ou seja, caso sua apólice continue em vigência, ele se torna uma ameaça para o fundo, já que sua inadimplência, mantida a cobertura, em caso de sinistro, estaria onerando milhares de segurados com os prêmios pagos, que seriam obrigados a colocar dinheiro bom para suportar dano sem cobertura.
É verdade que atualmente existem diferentes formas de se pagar o prêmio de um seguro. Com base nelas é possível que alguém com uma ou duas parcelas atrasadas esteja coberto, porque a proporcionalidade dos pagamentos efetuados lhe daria um determinado número de dias de cobertura, ainda que parte do prêmio não estivesse quitada, mesmo que vencida.
Ao julgar uma ação envolvendo inadimplência do segurado quanto ao pagamento de prêmio e à negativa da indenização com base nisso, o juiz deve levar em conta a lei e a forma como o contrato foi assinado. No primeiro caso, evidentemente, por mais triste que seja, alguém com prêmio não pago, não deve receber indenização de seguro. Já no segundo, a seguradora não pode alegar o atraso das parcelas para negar a indenização.
Um dos pilares do contrato de seguro é a boa fé dos contratantes. A boa fé exigida do segurado e da seguradora desde o início das negociações até o encerramento do contrato. Sem ela não há como o mútuo ser preservado e sem mútuo não há seguro, ou pelo menos a imensa maioria dos tipos de seguros existentes no mundo.
É impossível, numa época de crise, impedir o crescimento de situações deste tipo. Elas aumentam de número, geram stress, e podem ter origem tanto no segurado, como na seguradora. Afinal dinheiro curto não é privilégio de ninguém. O fundamental é que o magistrado encarregado do processo analise os fatos de acordo com o interesse do instituto do seguro e não com olhos voltados para a seguradora ou para o segurado.
*Antonio Penteado Mendonça é advogado e consultor, professor do Curso de Especialização em Seguros da FIA/FEA-USP e comentarista da Rádio Eldorado.
Fonte: O ESTADO DE S. PAULO